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Anti-natalism and interruption

I copy below part of the recent discussion I'm having with Julio Cabrera on anti-natalism and the ethics of procreation. I'll be saying a bit more on what I thought today about my own branch of negative ethics in the next post. The idea, however, is that one should give opportunities for ethical acts (or maybe for genuinely novel ethical acts). This could lead to self or general annihilation, but it is lead by a love of something else more than what happens to be. Being is not the guide - goodness is. So, the Mexicas opened their doors to Cortez. That was hospitable and self-annihilating - and different both from abdicating being (suicide where no ethical act can ever follow) and from non-procreation (where the possibility of further ethical acts is abolished).

The text:
O nada ao alcance de ninguém
O outro e a resposta em Julio Cabrera

a) O não-ser, Meinong e o outrinho
Julio Cabrera considera a procriação imoral. Ela tem um caráter muito especial de imoralidade imune à qualquer outra consideração (por exemplo acerca dos que co-existem e co-atuam ao lado de quem age) porque envolve dar existência a um outro. Trata-se de uma proibição moral que não é apenas prima facie – como não é apenas prima facie o heterocídio, o ato de dar inexistência à um outro – porque envolve uma responsabilidade com um outro que é imune à qualquer resposta que podemos dar aos demais (outros). Não é assim com o suicídio já que ele não envolve crucialmente um outro, mas a si mesmo. Na procriação (como no heterocídio) há um outro que deve ser o único a ser levado em consideração; ele escreve:

“[...]o principal “outro” na situação de procriação é o nascituro, de maneira que a ética negativa, em sua vertente antinatalista, é maximamente responsável por esse outro fundamental que é o objeto manipulado num nascimento. […] Haveria uma cegueira para a alteridade em sua negatividade”. Absolutamente não! Claro que há uma preocupação enorme com a alteridade desse pequeno outro (desse “outrinho” ou “outrinha”) que está sendo manipulado (de diversas maneiras). Os "outros" que estão interessados no nascimento de alguém talvez estejam envolvidos na manipulação, e não teríamos por que tentar sermos responsáveis com eles nesse caso.

Há assim uma dispensa especial, se eu entendo bem, nos casos de procriação (ou de heterocídio) de procurar responder aos outros que co-existem com quem age. Nesses casos, há uma resposta que se sobrepõe a qualquer outra – uma resposta mais devida, mais premente, mais inevitável, menos ambígua e mais moral. Mais que isso, responder a qualquer outro outro nesses casos é imoral e só pode ser motivado por considerações psicológicas, sociológicas, antropológicas, de alguma maneira extra-morais. Quando uma heterogênese – uma passagem de um outro à existência – está em questão, responder a qualquer outro que não seja o outro que ainda não existe é imoral. Diante de um não-existente, os co-existentes devem moralmente serem silenciados já que não há mais outro outro para se considerar senão aquele aquele que pode vir a existir.

Esta posição de Cabrera, se bem entendo, está bem ancorada em uma premissa importante da ética negativa: aquilo que existe não tem valor maior (ou menor) do que aquilo que não existe. Ou seja, os não-existentes não são menos valiosos do que os existentes – a diferença entre um existente e um não-existente não carrega valor moral (os inexistentes não são, por exemplo, menos perfeitos ou menos preciosos). Existentes e não-existentes não se distinguem em importância ou valor e nem sequer são tais que os não-existentes requerem existentes. Não há qualquer privilégio dos existentes sobre os não-existentes e, assim sendo, pode haver casos em que nada de atual pode sobrepujar a consideração que merece um não-existente; as premissas ontológicas (e me-ontológicas) da ética negativa asseguram que pode haver casos em que o outrinho que não existe torna irrelevante qualquer outro outro que passa a não precisar (eticamente) ser respondido. O tema da resposta a algum outro, como Cabrera admite quando considera a co-existência como “uma das sujeiras da existência” para aqueles que optaram por insistir, é central para entender a ética quando a existência se hipostasia em substantivo (um existente). Assim, a condenação da manipulação em geral diz respeito a um outro que não pode eticamente estar à mercê dos meus interesses por melhores que eles me pareçam. Cabrera advoga que há casos que requerem concentração em um único outro (no caso da procriação, o outrinho que está sendo manipulado). É este único outro que demanda, que requer uma resposta – é diante dele que somos responsáveis; e nesses casos de vida ou morte em que são instaurados pela possibilidade de procriação, é um outrinho não-existente o único diante do qual somos responsáveis. A ideia é que podemos responder igualmente a existentes e a não-existentes, já que a hipóstase da existência não cria privilégio ético e portanto não nos obriga a responder sempre aos existentes. Nesse sentido, a ética negativa e seu apelo a um não-existente outrinho como único outro nos casos de procriação tem sabor meinonguiano: aquilo que não existe também pode ser considerado (e merecer resposta), desde que possamos descrevê-lo – ou desde que seja um não-existente que instaura uma situação ética (como no caso da procriação).

Uma das minhas teses centrais em meu livro contra o pensamento atado às descrições (Excessos e Exceções) é que qualquer referência aos não existentes (“o homem gordo possível atrás da porta” ou “o homem careca possível atrás da porta”, para lembrar dos exemplos de Quine) tem que obedecer ao cânone descritivista. Não há uma abordagem milliana para não-existentes, os nomes daquilo que não existe não podem ser designadores rígidos kripkeanos (ou demonstrativos kaplanianos). Dito de outro modo, enquanto Cabrera pode precisa ser “o filósofo negativo de Córdoba que escreveu El lógico y la bestia” para ser Cabrera, J. von Kabra não pode senão satisfazer as descrições oferecidas sobre ele em Porque te amo não nascerás – qualquer não-existente que não satisfaça essas descrições não será J. von Kabra. (Kripke oferece uma abordagem da referência ao fictício baseada em um fingimento, porém o problema central de que termos que designam não-existentes tem sua referência galgada no uso atributivo permanece.) Não há um mundo possível (kripkeano) em que Sócrates, o personagem de Platão, não seja um filósofo maiêutico – ainda que o Sócrates existente poderia muito bem nunca ter se dedicado à filosofia e apenas à navegação. Personagens não podem ser identificados senão por meio de uma descrição. Não-existentes, aqueles que hipostasiam a não-existência (o não-ser, o nada), dependem de uma descrição para serem encontrados – e, em alguma medida, para serem o que são. Penso que isso ocorre porque não há co-não-existência. Os não-existentes não carregam também a carga do compartilhamento – a sujeira, nos termos de Cabrera, é própria da existência; o nada (e os não-existentes) são limpos. Os não-existentes não encontram outros não-existentes; eles são aquilo que são como as mônadas de Leibniz, independente dos encontros que ocorrem no tempo presente. Os não-existentes não convivem, não coincidem, não se esbarram – a fronteira entre o ser e o nada tenha ela que forma tiver imuniza os não-existentes de todo trato imprevisto com qualquer entidade (existente ou não). Dito de outra forma, o não-existente não é um objeto da experiência, mas um personagem conceptual no sentido que ele está inteiramente tutelado por uma descrição e jamais à mercê das vicissitudes do que co-existe, já que não existe. Quando respondemos a um não-existente, não respondemos a um encontro ético, a uma experiência ética ou a uma situação ética – apenas respondemos a uma construção, à uma descrição, a objeto da razão (ou da ficção).

É certo que Cabrera pode conceber o outrinho, o único outro que importa nos casos de procriação, como sendo virtual, ou potencial, e, ainda assim real. Este passo o afastaria do caráter negativo da ontologia de sua ética em favor de uma ontologia plana entre os existentes de diferentes modos. Se ele, contudo, considera o outrinho um não-existente que pode vir a existir mas que moralmente não deve fazê-lo, ele está privilegiando o outro fora da experiência, imune a qualquer encontro, definido por uma descrição em detrimento dos demais outros que sim podem escapar de suas descrições e que zanzam pela sujeira da co-existência. Mas ele pode não se importar com isso, afinal a distinção entre experiência e razão (ou entre encontro e ficção) pode ser tomada como mais uma das muitas faces da distinção entre o ser que vale mais e o nada que vale menos e assim é algo a ser exorcizado. Se a distinção deve ser borrada, a procriação pode ser comparada ao heterocídio mesmo que o outro do heterocídio envolva um existente. O problema com os não-existentes, que só podem ser encontrados através de descrições, não desaparece facilmente: o outrinho da procriação é em um sentido importante incapaz de alterar o mesmo. Ou seja, não há uma situação futura ou um mundo possível em que o outrinho possa deixar de satisfazer aquilo que eu penso dele: “aquele que pode ou não nascer”. O outro, enquanto outro, hipostasia a alteridade, que é uma alteração com respeito ao mesmo. O outrinho, que é o único que deve ser respondido nos casos de procriação, é um personagem conceptual da narrativa da ética negativa. O outrinho é um outro em geral, ou ainda um esquema de existente (que satisfaz a uma descrição). A consequência disso é que não há resposta ao outro nos casos de procriação: os outros são imunizados por um outrinho conceptual e, como consequência, respondemos apenas a nós mesmos – o que quer dizer que não respondemos e apenas fazemos o que julgamos correto. (Haveria um sentido em que se poderia entender eticamente um diagnóstico de Wittgenstein na seção 158 das Investigações: se o que é correto é o que nos parece correto, não há correção. Um tal entendimento faria um deslocamento ruidoso no que Wittgenstein pretendia com essa observação; o deslocamento poderia ser entendido como uma rejeição de uma ética privada que, em meus termos, implica a ideia de que a ética requer co-existência precisamente porque requer resposta.) Mais uma vez Cabrera pode responder que, ao aderir ao procedimento de exorcizar qualquer maior valorização do existente em contraste com o não-existente, a diferença entre aqueles que eu encontro (e que são existentes) e aqueles que eu não posso encontrar é imaterial – não há diferença entre aquilo que eu penso e aquilo que eu encontro. Porém o problema com o não-existente ainda permanece; porque o não-existente não co-existe, há um sentido em que ele não é um outro. Dito de outra forma, pelo menos nos casos de procriação, a ética negativa não pode dizer que exercita uma resposta aos outros – ela parece ser guiada por princípios, pelos mesmos princípios, independentemente de qualquer alteração que qualquer outro possa promover. Talvez a ética negativa (nesses casos) não possa ser posta em termos de resposta ao outro já que privilegia um único outro cuja alteridade em relação às premissas da ética negativa é suspeita.

b) Os outros da metafísica e a metafísica dos outros
N'O sofista, Platão, ao tematizar o não-ser e como ele tem que de alguma maneira ser para ser outro, inaugura um pensamento da alteração: ele contrapõe, em perpendicular ao ser e ao não-ser, o mesmo e o outro. É o estrangeiro que pensa o não-ser – o nada é associado a um sotaque, a um estranhamento em relação aos existentes habituais (ou nativos, ou locais). O outro está permeado de mesmo como o mesmo está permeado de outro: este permear se expressa no sotaque, a mesma língua falada de um modo estranho, as mesmas palavras com fonemas alienígenas. O outrinho dos casos de heterogênese na ética negativa é o único outro – e é um outro sem sotaque, sem estranhamento, sem estrangeiridade. Se ele é uma personagem conceptual, é parte da paisagem de contemplada pela ética negativa: é um nada que não é ninguém; ou seja, não é senão o mesmo outro em todos os casos de procriação – um outro em geral. Um outro em geral não interrompe (não coloca uma questão que requer uma resposta, não faz uma demanda imprevista). A interrupção é uma categoria do que eu chamo de metafísica dos outros; nos termos do Excessos e Exceções, a metafísica dos outros com um lugar para a interrupção é uma ontologia sem cabimento tornada em metafísica – ela procura fazer caber aquilo que não tem cabimento sem dar-lhe um cabimento ou, como Anna Tsing uma vez recomendou, apresentar um relato do mundo com a melhor das capacidades disponíveis deixando espaço para outros relatos que não se tornem subservientes. A metafísica dos outros é, em um sentido importante, uma empreitada ética: trata-se de considerar o mundo a partir do ponto de vista da co-existência. E a co-existência pode começar com uma teoria da co-existência, mas ela se transforma rapidamente em um co-existencial, em uma categoria da co-existência. De um ponto de vista da metafísica dos outros, os outros não são pensados em geral, eles são pensados como interlocutores da metafísica – aquilo a que a metafísica responde em um encontro, em uma fricção de relatos, em uma interlocução. Trata-se dos outros como aqueles que requerem respostas, e trata-se de respostas como aquilo que requer outros para demandá-las: as respostas são a continuidade da interlocução, e não o seu ponto final. A resposta não é, assim, uma solução (não é a solução final), mas é antes um adiamento, um deslocamento ou uma insistência. (Vale comparar aqui esta perspectiva com a que Cabrera recomenda em sua lógica negativa: os argumentos não são o fim (encerramento) mas parte dos fins (propósitos) da interlocução. Que “nenhum dos cinco mil sentidos está livre de mal-entendidos” como escreveu Leminski – e eis de volta o tema do sotaque – é o ponto de partida, já que pensar é da matriz da alteração que é aquela do mesmo e do outro, que é onde aparece o não-ser do parricídio).

Posso dizer que enquanto eu privilegio a resposta aos outros não-antecipados, a ética negativa prefere considerar um outro em geral que não demanda nada de específico, mas faz uma demanda geral pela não-existência. Essa diferença faz uma grande diferença entre os casos de procriação e os casos de heterocídio já que não se mata o outro em geral. (É certo que não se procria o outro em geral, mas na consideração da ética negativa, aparece sempre e apenas o outrinho que já não intervêm senão com a descrição associada aos casos de procriação.) Do ponto de vista da ética negativa, no entanto, qualquer consideração específica acerca dos outros existentes em casos de procriação é não-ética (é psicológica, sociológica ou antropológica de acordo com as caracterizações que Cabrera oferece). Ou seja, não apenas a ética não se coloca em termos de resposta mas responder é não-ético. A razão parece ser a seguinte: deve-se, moralmente, desconsiderar os co-existentes no caso em que eles são imorais de acordo com minhas convicções e que meu curso de ação é movido por aquilo que eu tomo como moralmente adequado. E aqui parece que estamos próximos de uma metafísica do mesmo, onde tudo pode ser respondido de uma vez por todas, considerando esquemas gerais nos quais todo existente e não-existente devem caber. Em contraste, a ética que se desprende de uma metafísica dos outros não imuniza nenhum outro – nem nos casos de procriação e nem nos casos de heterocídio. Imunizar os outros – exorcizar a co-existência – é dar um passo em direção ao mesmo. E talvez o eixo da ética (daquela que se conecta a uma metafísica dos outros) seja antes esse entre o mesmo e o outro e não aquele entre o existente e o não-existente.

Mas, Cabrera poderia dizer, não podemos compactuar com a imoralidade. E, no entanto, é precisamente isso que torna a moral premente e difícil: ela convive na imoralidade, ela é cercada de inabilitações e ela é também uma resposta às impossibilidades. O diagnóstico que faz a ética negativa é precisamente esse: somos jogados na imoralidade por decidirmos seguir existindo e é dessa imoralidade (do usurpador) que se apresenta nossa situação moral. A moralidade em um ambiente moral é fácil; mais que isso, ela não é mais do que a aplicação de um conjunto de regras morais, formais ou materiais. Em um contexto de imoralidades que leve em conta o contexto, a moral não é sobre responder da melhor maneira possível (e não é sobre salvar sua pele ou sua persona moral, já que isso se faz apenas quando o contexto de imoralidades não é levado em conta). A moral se torna uma questão de metafísica (dos outros) quando ela não pode ser guiada por um procedimento algorítmico independente dos outros que constituem a co-existência. Quando a consequência de nossas ações é a sobrevivência (a usurpação), já não podemos mais alcançar a redenção ética, e é depois da redenção ética que a ética começa a ter lugar. Se a ética está na resposta, ela está na reação de um mesmo a um outro – ela está na resposta ao não-usual, ao sem cabimento, ao estranho. Uma ética da resposta é uma ética do outro – que se instaura porque há mais do que o mesmo (a moral do mesmo está sempre já antecipada e pode ser absoluta, estéril e tautológica para usar os termos que Whitehead queria exorcizar de sua metafísica). Segue-se que há um dilema moral sem solução final e com demanda de resposta em alguns casos, por exemplo, em que podemos ser sinceros apenas se somos desleais e vice-versa; mas também em alguns casos, por exemplo, em que o outro nos pede algo em conflito com o que pede um outro outro. Já agora tenho a impressão de que temos pontos de partida (morais) muito diferentes: Cabrera parte da falta de valor do que existe (e co-existe) e eu quero partir do sobrevalor do outro sobre o mesmo, mesmo quando o outro está em um contexto de imoralidades. Porém há um elemento comum: o ser ele mesmo não é um valor; é justamente porque o existente precisa sair de si que a ética, o avesso da mera satisfação, envolve o nada. A existência é um peso – e alguns dos seus kilos são de imoralidade – e não um valor. Este elemento comum gera a metafísica dos outros, já que a co-existência é do que é feita a existência e seu peso. Este elemento comum também gera a doutrina da ética negativa acerca da procriação: não ter parte na imposição do peso da existência à ninguém. No segundo caso, contudo, há uma redenção do peso da existência no ato moral ilibado que imuniza os outros se eles são imorais. Meu ponto de partida é que é da imoralidade irredimível que a ética emerge; ou seja, daquilo que os outros demandam, mesmo que eles sejam imorais já que eles carregam de outra forma o peso de hipostasiar a existência. Se pensamos assim não estamos impondo o peso da co-existência com a imoralidade aos novos existentes pois aceitar a co-existência não é o mesmo que deixá-la como ela está – agir moralmente é promover justiça, mesmo que em situações irremediavelmente injustas. Que alguém esteja na co-existência e responda a ela é o que pode ensejar uma alteração; o não-existente, por outro lado, não apenas não demanda como um outro como também não responde.

c) A ética é sempre do dia seguinte
Se tivermos direito a este ponto de vista que imuniza qualquer consideração acerca da co-existência e se pauta apenas por um único outrinho determinado por uma descrição e se aceitarmos a imoralidade da procriação em geral, quem procria comete uma imoralidade em qualquer caso já que o vício aqui não é apenas prima facie mas independente de qualquer circunstância. Ainda assim, os casos de procriação têm um dia seguinte. E em um dia seguinte há demandas e respostas, há ética; há ética no assassino preso, no manipulador declarado, no mentiroso condenado. O dia seguinte muda um tanto as coisas porque o outrinho passa a ser um existente, e assim se evade das descrições que eram tudo o que o caracterizavam. Uma pergunta que parece importar é como agir com o outrinho uma vez que ele é fruto de uma imoralidade (todos os existentes somos). É certo que não se trata aqui de salvar a persona ética do procriador, uma vez que há um outr(inh)o a ser respondido. Dito de outra forma, o cenário é outro quando se consumou a heterogênese que a abstenção da procriação pretende evitar. Não podemos mais tratar portanto de colocar o outrinho em um véu de imunidade e não responder a ele – ele já é um outro existente. De fato, uma vez que o desenrolar de uma heterogênese – ética ou não – começa, as demandas da ética retomam seu lugar. A interlocução de demandas e respostas é sem fim (sem encerramento) uma vez que o peso da existência é também o peso da moralidade mesclado no peso da imoralidade. Procriadores que não respondem ao outrinho agora existente e são imunes a ele parecem portanto agindo imoralmente do ponto de vista da ética dos outros (a ética da resposta que se conecta com a metafísica dos outros) quando de qualquer ponto de vista (negativo) sobre a ética.

Isso nos remeteria ao tema da heterossexualidade, já que é nela que repousa o ato imoral da procriação. (Notando que o aborto não é uma opção na ética negativa de Cabrera já que se aproxima do heterocídio. De fato, é justamente o outrinho antes da procriação, entendido como o completo não-existente, que interessa à ética negativa – e é talvez justamente por ele ser um completo não-existente que não se trata de uma ética da resposta aos outros.) É na prática heterossexual – e no intercurso – que paira a imoralidade da procriação. Cabrera recomenda então ou a) a castidade, ou b) a moderação sóbria, ou c) tomar todas as precauções para “evitar a gravidez; inclusive manter relações apenas com mulheres que estão deveras convictas de não quererem procriar (existem muitas). Como Cabrera escreve, apenas a) pode ser quase que completamente segura em evitar a procriação. Seja como for, essa postura confere ao intercurso heterossexual um caráter bastante sui generis de ser o lócus mesmo da conexão entre o nada e a imoralidade. Parece um gesto crucial que traz em si a maior das temeridades e que portanto é o mais precário elo entre a imoralidade do ser e o refúgio do nada. De minha parte – deixando de lado as suspeitas acerca da instância que imuniza as demandas dos outros em favor de um não-existente – penso que a heterogênese tem muitas camadas e é um processo denso de moralidades (em um contexto, como os demais, de imoralidade). Em todo caso, são muitos os cúmplices das práticas heterossexuais; e considerá-las imorais, outra vez, não pode implicar em não se engajar em tais práticas para salvar sua persona moral. A recomendação mais adequada, portanto, seria d) combater as tais práticas heterossexuais onde quer que elas apareçam, na minha vida pessoal ou em qualquer outra instância. Esta seria a postura coerente com uma atenção ao outrinho que, como vimos, é um outro-em-geral, um não-existente. Porém aqui também aparece a sombra do dia seguinte: o que fazer com quem resiste a esta luta? O que fazer com os heterosedutores de toda natureza e, é claro, também com aqueles que se engajam voluntariamente em promover empreendimentos de heterogênese? Uma resposta é, de novo, imunizarmo-nos contra eles e prosseguir na cruzada. Minha resposta é, de novo, oferecer uma resposta a eles – e uma resposta, que não é uma solução final pré-fabricada, é uma invenção.

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